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Capítulo 2 – O mundo inferior me passa um trote

Nada completaria melhor a manhã perfeita do que uma longa corrida de táxi com uma garota irritada. Eu tentei falar com Annabeth, mas ela estava agindo como se eu tivesse batido na avó dela. As únicas coisas que eu consegui descobrir foi que ela teve uma primavera infestada de monstros em São Francisco; ela voltara ao acampamento duas vezes desde o natal, mas não ia me contar por que (o que meio que me deixou curioso, porque ela sequer me dissera que estava em Nova York); e ela não tinha descoberto nada sobre o paradeiro de Nico di Angelo (longa história).
- Alguma notícia de Luke? - perguntei.

Ela balançou a cabeça. Eu sabia que era um assunto delicado pra ela. Annabeth sempre admirou Luke, o antigo conselheiro do chalé de Hermes, que tinha nos traído e se juntado ao lorde Titã Cronos. Ela não admitiria isso, mas eu sabia que ela ainda gostava dele. Quando nós lutamos contra ele no Monte Tamalpais no último inverno, ele tinha sobrevivido de algum jeito a uma queda de cinco metros de um penhasco. Agora, até onde eu sabia, ele ainda estava navegando seu barco infestado de monstros, enquanto Lorde Cronos estava se recompondo de sua mutilação, pedaço por pedaço, em um sarcófago de ouro, esperando até ter forças para desafiar os deuses olimpianos. No vocabulário semideus nós chamamos isso de ‘problema’.
- Monte Tam ainda está lotado de monstros, - Annabeth disse. - Eu não arrisquei chegar muito perto, mas eu acho que Luke não está lá. Acho que eu saberia se ele estivesse.
Isso não fez eu me sentir muito melhor.
- E Grover?
- Ele está no acampamento, - ela disse. - Nós o veremos hoje.
- Ele teve alguma sorte? Digo, na busca por Pan?
Annabeth tocou as contas em seu pescoço, do jeito que ela faz quando está preocupada.
- Você vai ver, - ela falou. Mas não explicou.
Assim que passamos pelo Brooklin, eu usei o celular de Annabeth para ligar para minha mãe. Meio-sangues tentam não usar celulares se puderem evitar, pois falar ao celular é como mandar uma mensagem aos monstros: Eu estou aqui! Por favor, me coma agora!
Mas imaginei que esta ligação era importante. Eu deixei uma mensagem na nossa secretária tentando explicar o que tinha acontecido na Goode. Provavelmente eu não fiz um bom trabalho. Eu disse a minha mãe que estava bem, que ela não deveria se preocupar, mas que eu ia ficar no acampamento até as coisas se acalmarem. Também pedi a ela que dizesse ao Paul Blofis que eu sentia muito. Nós ficamos em silêncio após aquilo. A cidade passou por nós até que estávamos fora da via expressa, indo pelo norte de Long Island, passando por plantações e vinhedos e barracas de frutas. Eu olhei para o número de celular que Rachel Elizabeth Dare tinha rabiscado na minha mão. Eu sabia que era loucura, mas pensei em ligar para ela. Talvez ela pudesse me ajudar a entender sobre o que aquela empousa estivera falando — o acampamento queimando, meus amigos aprisionados. E por que Kelli explodiu em chamas?
Eu sabia que monstros nunca morriam de verdade. Eventualmente — talvez em semanas, meses ou anos — Kelli se reformaria a partir da força primordial do Mundo Inferior. Mas ainda assim monstros não se deixavam destruir tão facilmente. Se é que ela realmente fora destruída.
O taxi saiu na estrada 25 A. Nós passamos pelas florestas ao longo de North Shore até que uma cordilheira baixa apareceu à nossa esquerda. Annabeth pediu ao motorista que parasse na estrada 3.141, na base da Colina Meio-Sangue.
O motorista franziu a testa.
- Não tem nada aqui, senhorita. Você tem certeza que quer sair?
- Sim, por favor, - Annabeth atirou um rolo de dinheiro mortal, e o taxista decidiu não discutir.
Annabeth e eu subimos até o topo da colina. O jovem dragão guardião estava cochilando, enrolado em torno do pinheiro, mas ele mexeu sua cabeça conforme nos aproximávamos e deixou Annabeth acariciar seu queixo. Ele ronronava e dava piscadelas prazerosamente.
- Ei, Peleus, - Annabeth disse. - Mantendo tudo seguro?
Da última vez que eu vira o dragão ele estava com dois metros. Agora ele estava com pelo menos o dobro disso, e da grossura da própria árvore. Acima de sua cabeça, no galho mais baixo do pinheiro, o Velocino de Ouro reluzia, sua mágica protegendo as fronteiras do acampamento contra invasões. O dragão parecia relaxado, como se tudo estivesse bem. Abaixo de nós o Acampamento Meio-Sangue parecia pacífico — campos verdes, floresta, construções gregas brancas reluzentes. Uma casa de fazenda de quatro andares que chamávamos de Casa Grande situada altivamente no centro dos campos de morango. Ao norte, depois da praia, o estreito de Long Island brilhava à luz do sol. Ainda assim... algo parecia errado. Havia tensão no ar, como se a própria colina estivesse prendendo a respiração, esperando algo ruim acontecer.
Descemos o vale e encontramos o acampamento de verão em plena atividade. Grande parte dos campistas chegara na última sexta-feira, então eu já me sentia deslocado. Os sátiros estavam tocando suas flautas nos campos de morango, fazendo as plantas crescerem com mágica dos  bosques. Campistas estavam tendo aulas de montaria, passando sobre as árvores em seus pégasos. Fumaça subia das fornalhas, e martelos retiniam enquanto garotos faziam suas próprias armas para Artes & Ofícios.
Os times de Atena e Demeter estavam apostando uma corrida de bigas em torno da pista, e no lago de canoagem alguns campistas em um trirreme grego lutavam com uma serpente marinha grande e laranja. Um típico dia no acampamento.
- Preciso falar com Clarisse, - Annabeth disse.
Eu olhei para ela como se ela tivesse acabado de dizer Eu preciso comer uma bota grande e fedorenta.
- Pra quê?”
Clarisse, do chalé de Ares, era uma das pessoas de quem eu menos gostava. Ela era uma miserável e ingrata valentona. Seu pai, o deus da guerra, queria me matar. Ela tentava me massacrar regularmente. Fora isso ela era ótima.
- Nós estamos trabalhando em algo, - Annabeth disse. - Vejo você depois.
- Trabalhando em quê?
Annabeth se voltou para o bosque.
- Vou falar para Quíron que você está aqui, - ela disse. - Ele vai querer falar com você antes da audiência.”
- Que audiência?
Mas ela correu pelo caminho em direção ao campo de arco e flecha sem olhar para trás.
- É, - murmurei. - Legal falar com você também.

Enquanto eu andava pelo acampamento, cumprimentei alguns amigos. Na estrada para a Casa Grande, Connor e Travis Stoll do chalé de Hermes estavam fazendo ligação direta na caminhonete do acampamento. Silena Beauregard, conselheira do chalé de Afrodite, acenou para mim de seu pégaso quando voou por mim. Eu procurei por Grover, mas não o vi. Finalmente eu chequei a arena de combates, aonde eu geralmente vou quando estou de mau humor. Praticar com a espada sempre me acalma. Talvez porque esgrima seja uma coisa que eu realmente consiga entender. Eu entrei no anfiteatro e meu coração quase parou. No meio da arena, de costas para mim, estava o maior cão infernal que eu já tinha visto. Digo, eu já vi uns cães infernais bem grandes. Um do tamanho de um rinoceronte tentou me matar quando eu tinha doze anos. Mas este cão era maior que um tanque. Eu não fazia ideia de como ele tinha passado pelas fronteiras mágicas do acampamento. Ele parecia em casa, deitado de barriga, rosnando contente enquanto mascava a cabeça de um boneco de treino. Ele não havia me notado ainda, mas se eu fizesse barulho sabia que ele me perceberia. Não havia tempo para buscar ajuda. Eu destampei Contracorrente.
- Yaaaaaah! - ataquei. Eu levei a espada para baixo, nas enormes costas do monstro, quando, vindo do nada, outra espada bloqueou meu golpe.
CLANG!
O cão infernal levantou as orelhas.
- WOOF!
Eu pulei para trás e instintivamente ataquei o espadachim — um homem grisalho em uma armadura grega. Ele desviou meu ataque sem problemas.
- Calma aí! - ele disse. - Trégua!
- WOOF! - O latido do cão sacudiu a arena.
- Isso é um cão infernal! - gritei.
- Ela é inofensiva, - o homem falou. - Esta é a Sra. O’Leary.
Eu pisquei.
- Sra. O’Leary?
Ao som de seu nome, o cão infernal latiu novamente. Eu percebi que ela não estava brava. Ela estava excitada. Ela empurrou o encharcado, tremendamente mastigado boneco na direção do espadachim.
- Boa garota, - o homem disse. Com sua mão livre ele agarrou a o boneco pelo pescoço e o atirou na direção das arquibancadas. - Pegue o grego! Pegue o grego!
Sra. O’Leary foi atrás de sua presa e atirou-se no boneco, amassando sua armadura. Ela
começou a mastigar seu elmo. O homem sorriu contidamente. Ele estava com seus cinquenta anos, acho, com seu cabelo grisalho curto e barba grisalha feita. Ele estava em boa forma para um cara mais velho. Vestia uma calça de caminhada preta e trazia uma armadura de bronze por cima da camiseta do acampamento. Na base do seu pescoço estava uma marca estranha, uma mancha púrpura parecida com uma marca de nascença ou uma tatuagem, mas antes que eu pudesse perceber o que era ele levantou as tiras de sua armadura e a marca desapareceu sob sua gola.
- Sra. O’Leary é meu animal de estimação, - ele explicou. - Eu não podia deixar você enfiar uma espada na anca dela, podia? Isso poderia tê-la assustado.
- Quem é você?
- Promete não me matar se eu abaixar a minha espada?
- Acho que sim.
Ele guardou a espada e ergueu a mão.
- Quintus.
Eu apertei sua mão. Era áspera como uma lixa.
- Percy Jackson, - falei. - Desculpe por... Como você, hum...
- Consegui um cão infernal como animal de estimação? Longa história, envolvendo muitas quase mortes e alguns brinquedos de morder gigantes. Aliás, eu sou o novo instrutor de espada. Ajudando Quíron enquanto o Sr. D está fora.
- Ah. - Tentei não encarar enquanto a Sra. O’Leary arrancava o escudo do boneco com o braço ainda atado e balançava como um frisbee. - Espere, o Sr. D está fora?
- Sim, bem... tempos difíceis. Até Dioniso deve ajudar. Ele foi visitar alguns velhos amigos. Certificar-se de que eles estão do lado certo. Eu provavelmente não devo falar mais que isso.
Se Dioniso estava fora, essa era a melhor notícia que eu tivera o dia todo. Ele só era diretor do acampamento porque Zeus o enviara pra cá como punição por perseguir uma ninfa dos bosques proibida. Ele odiava os campistas e tentava fazer nossas vidas infelizes. Com ele fora o verão poderia realmente ser legal. Por outro lado, se Dioniso havia mexido seu traseiro e efetivamente começado a ajudar os deuses recrutando contra a ameaça dos Titãs, as coisas deviam estar muito ruins.
Na minha esquerda, houve um alto BUMP. Seis engradados de madeira do tamanho de mesas de piquenique estavam empilhados, e eles estavam balançando. Sra. O’Leary ergueu a cabeça e avançou na direção das caixas.
- Calma, garota! - Quintus disse. - Esses não são pra você. - Ele a distraiu com o escudo-frisbee de bronze.
As caixas martelavam e sacudiam. Havia palavras impressas nas laterais, mas com minha dislexia eu levei alguns minutos para decifrar:
RANCHO TRIPLO G
FRÁGIL
ESTE LADO PARA CIMA

Ao longo da parte de baixo, em letras menores:

ABRA COM CUIDADO.
O RANCHO TRIPLO G NÃO SE RESPONSABILIZA POR DANOS PATRIMONIAIS, MULTILAÇOES OU MORTES EXCRUCIANTEMENTE DOLOROSAS.


- O que tem nas caixas? - perguntei.
- Uma pequena surpresa, - Quintus disse. - Para o treinamento de amanhã a noite. Vocês vão adorar.
- Hum, tá bom, - falei, apesar de não estar certo sobre a parte da morte excruciantemente dolorosa.
Quintus jogou o escudo de bronze, e a Sra. O’Leary se moveu pesadamente atrás dele.
- Vocês jovens precisam de mais desafios. Não existiam acampamentos como este quando eu era um garoto.”
- Você... você é um meio-sangue? - Não tive a intenção de parecer surpreso, mas eu nunca vira um semideus velho antes.
Quintus riu baixo.
- Alguns de nós chegam à idade adulta, sabe. Nem todos nós somos objeto de
terríveis profecias.
- Você sabe sobre a minha profecia?”
- Eu ouvi algumas coisas.
Eu quis perguntar quais coisas, mas bem aí Quíron cavalgou pela arena.
- Percy, aí está você!
Ele devia ter vindo da aula de arco e flecha. Ele tinha um arco e uma aljava sobre sua camiseta CENTAURO n°1. Ele tinha cortado o cabelo e feito a barba para o verão, e sua metade inferior, que era um garanhão branco, estava respingada com lama e grama.
- Vejo que você conheceu nosso novo instrutor. - O tom de Quíron era leve, mas havia uma expressão inquietante em seus olhos. - Quintus, você se importa se eu pegar Percy emprestado?
- Nem um pouco, Mestre Quíron.
- Não há necessidade de me chamar de ‘Mestre’ - Quíron disse, apesar de ter soado lisonjeado.
- Venha Percy. Temos muito a discutir.
Eu dei mais uma olhada na Sra. O’Leary, que agora estava mastigando as pernas do boneco.
- Bem, até mais, - falei para Quintus. Enquanto andávamos sussurrei para Quíron.            - Quintus parece meio...
- Misterioso? - Quíron sugeriu. - Difícil de ler?
- É.
Quíron assentiu
- Um meio-sangue muito qualificado. Ótimo espadachim, eu só desejaria
entender... - O que fosse que ele ia dizer, ele aparentemente mudou de ideia.                     - Prioridades primeiro, Percy. Annabeth me disse que você encontrou algumas empousai.
- É. - Eu contei sobre a luta na Goode, e como Kelli explodiu em chamas.
- Hum, - Quíron disse. - Os mais poderosos podem fazer isso. Ela não morreu, Percy. Ela simplesmente escapou. Não é bom que demônios estejam se agitando.
- O que elas estavam fazendo lá? - perguntei. - Esperando por mim?
- Possivelmente. - Quíron franziu as sobrancelhas. - É surpreendente que você tenha sobrevivido. Os poderes delas para enganar... quase qualquer herói homem teria caído diante do feitiço e sido devorado.
- Eu teria sido, - admiti. - Se não fosse por Rachel.
Quiron assentiu.
- Irônico ser salvo por uma mortal, contudo estamos em débito com ela. O que a empousa disse sobre um ataque ao acampamento... devemos falar mais sobre isso. Mas
agora venha, devemos ir para a floresta. Grover vai querer você lá.
- Onde?
- Na audiência formal dele, - Quíron disse sombriamente. - O Conselho dos Anciões de Casco Fendido está se reunindo para decidir o destino dele.

Quíron disse que precisávamos nos apressar, então eu o deixei me dar uma carona em suas costas. Conforme passávamos pelos chalés, eu dei uma olhada no refeitório — um pavilhão grego sem teto em uma colina com vista para o mar. Era a primeira vez que via o lugar desde o último verão, e isso me trouxe memórias ruins.
Quíron precipitou-se para dentro da floresta. Ninfas espiaram para fora de suas árvores para nos ver passar. Grandes formas farfalharam nas sombras — monstros que estocávamos aqui como um desafio para os campistas.
Eu achava que conhecia os bosques muito bem depois de jogar capture a bandeira aqui por dois verões, mas Quíron pegou um caminho que eu não reconheci, através de um túnel de velhos salgueiros, por uma pequena queda d’água e para dentro de uma clareira coberta com flores selvagens.
Um bando de sátiros estava sentado em círculo na grama. Grover estava de pé no meio, de frente para três velhos, realmente gordos, sátiros sentados em tronos topiários no formato de ramos de rosas. Eu nunca vira os três velhos sátiros antes, mas imaginei que eles deviam ser o Conselho dos Anciões de Casco Fendido.
Grover parecia estar contando a eles uma história. Ele torcia a barra da camiseta, deslocando seu peso nervosamente de um casco de bode para outro. Ele não tinha mudado muito desde o último inverno, talvez porque sátiros envelhecem na metade do tempo dos humanos. Sua acne reaparecera. Seus chifres tinham crescido um pouco de forma que apareciam entre seu cabelo cacheado. Percebi com um clique que agora eu era mais alto do que ele.
Sentadas de um lado do círculo estavam Annabeth, outra garota que eu nunca vira antes, e Clarisse. Quíron me deixou perto delas.
O cabelo castanho pegajoso de Clarisse estava preso por uma bandana camuflada. Se possível, ela parecia ainda maior, como se estivesse malhando. Ela olhou pra mim e murmurou Moleque, o que deveria significar que ela estava de bom humor. Geralmente ela diz oi tentando me matar. Annabeth tinha um braço em volta da outra garota, que parecia ter estado chorando. Ela era pequena — delicada, acho que você poderia chamar assim — com cabelo fino cor de âmbar e uma face bonita, élfica. Ela vestia uma túnica verde e sandálias de tira, e estava secando seus olhos com um lenço.
- Está indo terrivelmente, - ela choramingou
- Não, não, - Annabeth afagou seus ombros. - Ele vai ficar bem, Juniper. Annabeth olhou pra mim e moveu seus lábios formando as palavras namorada do Grover.
Pelo menos acho que foi isso que ela disse, mas aquilo não fazia o menor sentido.
Grover com uma namorada? Então eu olhei para Juniper com mais atenção, e percebi que suas orelhas eram levemente pontudas. Seus olhos, ao invés de estarem vermelhos por chorar, estavam tingidos de verde, da cor de clorofila. Ela era uma ninfa do bosque — uma dríade.
- Senhor Underwood! - o membro do conselho à direita gritou, interrompendo o que Grover estava tentando dizer. - O senhor espera seriamente que acreditemos nisso?
- M-mas Silenus, - Grover gaguejou. - É a verdade!
O cara do Conselho, Silenus, virou para seus colegas e resmungou algo. Quíron trotou até a frente e ficou em pé próximo a eles. Lembrei que ele era um membro honorário do conselho, mas nunca tinha pensado muito nisso. Os anciões não eram muito impressionantes. Eles me lembravam bodes de zoológico — barrigas grandes, expressões sonolentas e olhos vidrados que não conseguiam ver além de um punhado de ração para bode. Eu não sabia porque Grover estava tão nervoso.
Silenus puxou sua camisa pólo amarela por cima da barriga e se ajustou em seu trono de
roseira.
- Senhor Underwood, por seis meses estivemos ouvindo esses boatos escandalosos sobre você ter ouvido o deus da natureza Pan falar.
- Mas eu ouvi.
- Mentiras! - disse o ancião da esquerda.
- Agora, Maron, - Quíron disse. - Paciência.
- Paciência, realmente! - Maron falou. - Eu estou com essa tolice até os chifres. Como se o deus da natureza fosse falar com... com ele.
Juniper parecia querer socar o velho sátiro, mas Annabeth e Clarisse a seguraram.
- Briga errada, mocinha, - Clarisse murmurou. - Espere.
Eu não sabia o que me surpreendia mais: Clarisse evitando que alguém brigasse, ou o fato que ela e Annabeth, que se odiavam, quase pareciam estar trabalhando juntas.
- Por seis meses, - Silenus continuou, - temos sido indulgentes, Senhor Underwood. Deixamos você viajar. Permitimos que você mantivesse sua licença de buscador.
Esperamos você trazer provas das suas ridículas alegações. E o que você achou em seis meses de busca?
- Eu só preciso de mais tempo, - Grover pediu.
- Nada! - o ancião no trono do meio replicou. - Você não achou nada.
- Mas, Leneus...
Silenus levantou sua mão. Quíron se inclinou e disse algo aos sátiros. Os sátiros não pareciam felizes. Eles resmungaram e discutiram entre eles, mas Quíron disse mais alguma coisa, e Silenus suspirou. Ele assentiu relutantemente.
- Senhor Underwood, - Silenus anunciou, - nós lhe daremos mais uma chance.
Grover se alegrou.
- Muito obrigado!
- Mais uma semana.
- O quê? Mas, senhor! Isso é impossível!
- Mais uma semana, Senhor Underwood. E então, se você não conseguir provar suas alegações, será tempo de escolher outra carreira. Algo que se adapte aos seus talentos dramáticos. Teatro de fantoches, talvez. Ou sapateado.”
- Mas senhor, eu... eu não posso perder minha licença de buscador. Minha vida inteira...
- Esta reunião do Conselho está encerrada, - Silenus disse. - E agora nos deixe aproveitar nossa refeição do meio-dia!”
Os anciões bateram palmas, e várias ninfas saíram de suas árvores com travessas de vegetais, frutas, latas de alumínio, e outras delícias de bode. Os sátiros saíram do circulo e avançaram na comida. Grover se dirigiu desanimado até nós. Sua camiseta azul claro tinha um desenho de um sátiro nela e escrito TEM CASCOS?
- Oi, Percy, - ele disse, tão deprimido que nem sequer se ofereceu para apertar minha mão.
- Correu tudo bem, hein?
- Esses bodes velhos! - Juniper disse. - Ah, Grover, eles não sabem o quanto você tentou!
- Existe outra opção. - Clarisse disse sombriamente.
- Não, não! - Juniper balançou a cabeça. - Grover, eu não vou deixar.
Seu rosto estava pálido.
- Eu... eu pensei sobre isso. Mas nós sequer sabemos aonde procurar.
- Do que vocês estão falando? - perguntei.
Ao longe, uma trombeta de concha soou. Annabeth franziu os lábios.
- Eu vou te explicar mais tarde, Percy. Melhor voltarmos aos chalés. A inspeção está começando.

Não parecia justo que eu tivesse inspeção de chalé quando tinha acabado de chegar ao
acampamento, mas era assim que funcionava. Toda tarde um dos conselheiros passava com um pergaminho com uma lista de checagem. O melhor chalé ficava com o primeiro horário de banho, o que significava água quente garantida. O pior fazia trabalhos na cozinha após o jantar.
O meu problema: geralmente eu era o único no chalé de Poseidon, e eu não era exatamente o que se pode chamar de organizado. As harpias da limpeza só vinham no último dia do verão, então meu chalé deveria estar como eu tinha deixado no inverno: os papéis de doces e salgadinhos ainda no meu beliche, minha armadura do capture a bandeira jogada aos pedaços por todo o chalé.
Eu corri na direção da área comum, onde os doze chalés — um para cada deus olimpiano — formavam um U ao redor do gramado central. Os filhos de Demeter estavam varrendo o deles e fazendo flores crescerem nos vasos das janelas. Só de estalar os dedos eles podiam fazer crescer madressilva em cima da porta e margaridas cobrirem o teto, o que era totalmente injusto. Eu não acho que eles alguma vez pegaram o último lugar na inspeção. Os filhos de Hermes estavam correndo em pânico, escondendo roupa suja embaixo dos beliches e acusando um ao outro de roubo. Eles eram desajeitados, mas ainda tinham vantagem sobre mim. No chalé de Afrodite, Silena Beauregard estava justamente saindo, checando itens no pergaminho de inspeção. Murmurei uma praga. Silena era legal, mas ela era maníaca por limpeza, a pior inspetora. Ela gostava que as coisas fossem bonitas. Eu não fazia “bonito”. Eu quase podia sentir meus braços ficando pesados de tantos pratos que eu teria que lavar esta noite.
O chalé de Poseidon estava no final do “lado masculino” dos chalés no lado direito do gramado. Era feito de pedras marinhas cinzas com conchas incrustadas, longo e baixo como um paiol, mas tinha janelas viradas para o mar, e sempre tinha uma boa brisa passando por elas. Eu voei para dentro, imaginando se poderia fazer um rápido trabalho de limpeza embaixo-dacama como os caras de Hermes, então eu vi meu meio-irmão Tyson varrendo o chão.
- Percy! - ele gritou. Ele soltou a vassoura e correu até mim. Se você nunca foi abraçado por um ciclope entusiasmado vestido com um avental florido e luvas de borracha, eu te digo, vai te acordar rapidinho.
- Ei, Grandão! - eu disse. - Opa, cuidado com as costelas. As costelas!
Eu consegui sobreviver ao seu abraço se urso. Ele me colocou no chão, sorrindo loucamente, seu único olho castanho cheio de excitação. Seus dentes estavam amarelos e tortos como sempre, e seu cabelo era um ninho de rato. Ele vestia jeans tamanho GGGG esfarrapado, e uma camisa de flanela rasgada por baixo do avental, mas ele ainda era um colírio para os olhos. Eu não o via por quase um ano, desde que ele foi trabalhar nas forjas dos Ciclopes no mar.
- Você está bem? - ele perguntou. - Não foi comido por monstros?
- Nem mesmo um pedacinho. - Mostrei que ainda tinha dois braços e ambas as pernas, e Tyson aplaudiu feliz.
- Legal! - ele disse. - Agora podemos comer sanduíches de manteiga de amendoim e montar peixes-pôneis! Podemos lutar com monstros e ver Annabeth fazer coisas irem BOOM!
Eu esperava que ele não quisesse dizer tudo ao mesmo tempo, mas eu disse a ele que
absolutamente, nós teríamos muita diversão neste verão. Eu não pude evitar sorrir, ele estava tão animado com tudo.
- Mas primeiro, - falei, - temos que nos preocupar com a inspeção. Nós devemos...
Então eu olhei em volta e vi que Tyson tinha estado ocupado. O chão estava varrido. As camas dos beliches feitas. A fonte de água salgada havia sido limpa de forma que o coral brilhava. Nos parapeitos das janelas, Tyson colocara vasos cheios de água com anêmonas do mar e estranhas plantas do fundo do mar que brilhavam, mais bonitas que qualquer buquê de flores que o chalé de Demeter poderia fazer.
- Tyson, o chalé está... ótimo!
Ele sorriu.
- Você viu os peixes-pôneis? Eu os coloquei no teto!
Um bando de miniaturas de cavalos-marinhos de bronze estava pendurado no teto, de forma que parecia que nadavam no ar. Eu não podia acreditar que Tyson, com suas mãos enormes, pudesse fazer coisas tão delicadas. Então eu olhei para o meu beliche, e vi meu antigo escudo pendurado na parede.
- Você consertou!
O escudo tinha sido seriamente danificado no último inverno em um ataque de mantícora. Mas agora estava perfeito novamente — sem um arranhão. Todas as figuras de bronze, minhas aventuras com Tyson e Annabeth no Mar de Monstros estavam polidas e brilhando. Eu olhei para Tyson. Não sabia como agradecê-lo. Então alguém atrás de mim disse,
- Minha nossa.
Silena Beauregard estava parada na porta com seu pergaminho de inspeção. Ela entrou no chalé, deu uma volta rápida, então ergueu as sobrancelhas para mim.
- Bem, eu tive minhas dúvidas. Mas você limpou tudo satisfatoriamente, Percy. Eu me
lembrarei disso. - Ela piscou pra mim e saiu.
Tyson e eu passamos a tarde colocando o papo em dia, o que foi bom depois de uma manhã sendo atacado por líderes de torcida demoníacas. Nós fomos até a forja e ajudamos Beckendorf, do chalé de Hefesto, no trabalho com metais.
Tyson nos mostrou como ele aprendeu a confeccionar armas mágicas. Ele fez um machado de batalha de lâmina dupla brilhante tão rápido que até Beckendorf ficou impressionado. Enquanto trabalhava, Tyson nos contou sobre seu ano debaixo d’água. Seu olho se iluminou quando ele descreveu as forjas dos Ciclopes e o palácio de Poseidon, mas ele também nos contou o quão tensas as coisas estavam. Os antigos deuses do mar, os que comandavam durante a era dos Titãs, estavam começando uma guerra contra nosso pai. Quando Tyson partiu, batalhas aconteciam por todo o Atlântico. Ouvir isso me deixou ansioso, como se eu devesse estar ajudando, mas Tyson me assegurou que papai queria nós dois no acampamento.
- Muitas pessoas más acima do mar também, - Tyson disse. - Podemos fazer elas irem BOOM!
Depois das forjas, ficamos um tempo no lago de canoagem com Annabeth. Ela estava realmente feliz por ver Tyson, mas eu sabia que ela estava distraída. Ela não parava de olhar para a floresta, como se estivesse pensando no problema de Grover com o Conselho. Eu não podia culpá-la. Grover não estava a vista, e eu me sentia realmente mal por ele. Achar o deus perdido Pan era seu objetivo na vida. Seu pai e seu tio desapareceram seguindo o mesmo sonho. No último inverno, Grover ouvira
uma voz em sua mente: Espero por você — uma voz que ele tinha certeza pertencer a Pan — mas aparentemente sua busca levara a lugar nenhum. Se o conselho revogasse sua licença de buscador agora, ele ficaria arrasado.
- Qual é a ‘outra opção’? - perguntei para Annabeth. - A que Clarisse mencionou?
Ela pegou uma pedra e arremessou no lago.
- Algo que Clarisse descobriu. Eu a ajudei um pouco durante esta primavera. Mas seria perigoso. Especialmente para Grover.
- O menino-bode me assusta, - Tyson murmurou. Eu o encarei. Tyson tinha enfrentado touros flamejantes e monstros marinhos e canibais gigantes.
- Por que você ficaria assustado com Grover?”
- Cascos e chifres, - Tyson balbuciou nervosamente. - E pelo de bode faz meu nariz coçar.
E isso acabou encerrando nossa conversa sobre Grover.

Antes do jantar, Tyson e eu fomos até a arena de esgrima. Quintus estava feliz em ter
companhia. Ele ainda não me contou o que estava nas caixas, mas me ensinou alguns movimentos com a espada. O cara era bom. Ele lutava como algumas pessoas jogam xadrez — como se ele colocasse todos os movimentos juntos e você não conseguia ver o padrão até que ele desse o golpe final e ganhasse com a espada na sua garganta.
- Boa tentativa, - ele me disse. - Mas sua guarda está muito baixa.
Ele investiu e eu bloqueei.
- Você sempre foi um espadachim? - perguntei.
Ele desviou meu ataque pelo alto.
- Eu já fui muitas coisas.
Ele golpeou e eu esquivei para o lado. A alça da sua armadura escorregou, e eu vi aquela marca em seu pescoço — a mancha roxa. Mas não era uma marca comum. Tinha uma forma definida — um pássaro com as asas dobradas, como uma codorna ou algo do tipo.
- O que é isso no seu pescoço? - perguntei, o que provavelmente era uma pergunta rude, mas você pode culpar minha TDAH. Eu tendo a despejar as coisas.
Quintus perdeu o ritmo. Eu bati no cabo da sua espada e derrubei a lâmina da mão dele.
Ele esfregou os dedos. Então arrumou a armadura para cobrir a marca. Não era uma tatuagem, percebi. Era uma velha queimadura... como se ele tivesse sido marcado.
- Um lembrete. - Ele pegou sua espada e forçou um sorriso. - Agora, vamos de novo?
Ele me pressionou pra valer, não dando chance para mais perguntas. Enquanto lutávamos Tyson brincava com a Sra. O’Leary, a qual ele chamou de “pequena totó”.
Eles se divertiram lutando pelo escudo de bronze e brincando de Pegue o Grego. Ao pôr do sol, Quintus não tinha uma gota de suor, o que parecia estranho; mas eu e Tyson estávamos quentes e fedendo, portanto fomos para o banho e nos preparamos para o jantar. Eu estava me sentindo bem. Era quase um dia normal no acampamento. Então o jantar chegou, e todos os campistas se alinharam por chalés e marcharam para o refeitório. A maioria ignorou a fissura selada no chão de mármore na entrada — uma cicatriz denteada de três metros que não estava lá no último verão — mas eu fui cuidadoso ao passar por cima dela.
- Fenda grande, - Tyson disse quando estávamos na nossa mesa - Terremoto, talvez?
- Não, - eu disse. - Não foi um terremoto.
Eu não estava certo se devia contar a ele. Era um segredo que só Grover, Annabeth e eu
sabíamos. Mas olhei para o grande olho de Tyson, eu sabia que não poderia esconder isso dele.
- Nico di Angelo, - falei, abaixando a voz. - Ele é um meio-sangue que trouxemos para o acampamento no último verão. Ele, hum... ele me pediu para proteger sua irmã em uma missão, e eu falhei. Ela morreu. Agora ele me culpa.
Tyson franziu a testa.
- Então ele fez uma fenda no chão?
- Esses esqueletos nos atacaram, - eu disse. - Nico disse a eles para irem embora, e o chão simplesmente se abriu e os engoliu. Nico... - olhei em volta para ter certeza que ninguém estava ouvindo. - Nico é um filho de Hades.
Tyson assentiu pensativamente.
- O deus do pessoal morto.
- É.
- Então esse garoto Nico se foi agora?
- Eu-eu acho. Eu procurei por ele na primavera. Annabeth também. Mas não tivemos sorte. Isso é segredo, Tyson. Ok? Se alguém descobrir que ele é filho de Hades, ele ficará em perigo. Você não pode contar nem para Quíron.”
- A profecia ruim, - Tyson falou. - Titãs tentariam usá-lo se soubessem.
Eu o encarei. Às vezes era fácil esquecer que apesar de ser grande e infantil, Tyson era bem esperto. Ele sabia que a próxima criança dos Três Grandes deuses — Zeus, Poseidon e Hades — que chegasse aos dezesseis anos estava profetizada a salvar ou destruir o Monte Olimpo. A maioria assumia que era eu, mas se eu morresse antes dos dezesseis anos, ela poderia facilmente se aplicar a Nico.
- Exato, - eu disse. - Então...
- Boca selada, - Tyson prometeu. - Como a fenda no chão.

Tive problemas para dormir naquela noite. Deitei na cama ouvindo as ondas na praia, e as corujas e monstros no bosque. Estava com medo de ter pesadelos quando caísse no sono. Veja bem, para meio-sangues, sonhos dificilmente são só sonhos. Recebemos mensagens. Vislumbramos coisas que estão acontecendo com nossos amigos ou inimigos. Algumas vezes vislumbramos até o passado ou o futuro. E no acampamento meus sonhos eram sempre mais frequentes e vívidos.
Então eu ainda estava acordado por volta da meia noite, olhando para o colchão do beliche acima de mim, quando percebi que havia uma luz estranha no quarto. A fonte de água salgada estava brilhando.
Eu atirei as cobertas e andei receosamente até a fonte. Vapor emergia da água quente e salgada. Cores de arco-íris tremeluziam através do vapor, apesar de não haver nenhuma luz no quarto exceto pela lua lá fora. Então uma agradável voz feminina falou do vapor: Por favor deposite um dracma.
Olhei para Tyson, mas ele ainda estava roncando. Ele dormia tão pesadamente quanto um elefante tranquilizado.
Eu não sabia o que pensar. Eu nunca recebera uma mensagem de Íris a cobrar antes. Um dracma dourado brilhou no fundo da fonte. Eu o peguei e joguei na névoa. A moeda desapareceu.
- Ó, Íris, Deusa do arco-íris, - sussurrei. - Mostre-me... hum, o que for que você precise me mostrar.
A névoa tremulou. Eu vi a negra margem de um rio. Tufos de neblina flutuavam pela água escura. A costa cheia de pedras vulcânicas irregulares. Um jovem garoto se agachava no banco de areia, tratando uma fogueira. As chamas queimavam em uma cor azul não natural. Então eu vi o rosto do garoto. Era Nico di Angelo. Ele jogava pedaços de papel no fogo — cartas de troca de Mitomagia, parte do jogo pelo qual ele tinha sido obcecado no inverno passado. Nico tinha apenas dez anos, talvez onze agora, mas ele parecia mais velho. Seu cabelo estava mais comprido. Estava desgrenhado e quase tocava seus ombros. Seus olhos estavam negros. Sua pele azeitonada havia se tornado mais pálida. Ele vestia jeans preto rasgado e uma jaqueta de aviador, que era vários números maior, aberta sobre uma camiseta preta. Seu rosto estava sujo, seus olhos um pouco selvagens. Ele parecia um garoto que vivera nas ruas. Esperei que ele olhasse para mim. Sem dúvida ele ficaria maluco de raiva, começaria a me acusar de ter deixado sua irmã morrer. Mas ele não pareceu me notar. Fiquei quieto, sem atrever a me mexer. Se ele não enviara a mensagem de Íris, então quem?
Nico jogou outra carta nas chamas azuis.
- Inútil, - ele resmungou. - Não posso acreditar que já gostei disso.
- Um jogo infantil, mestre, - outra voz concordou. Parecia vir de perto do fogo, mas eu não podia ver quem estava falando.
Nico olhou para o rio. Na margem mais distante havia uma praia de areia negra envolta em nevoeiro. Eu reconheci: o Mundo Inferior. Nico estava acampando na margem do Rio Estige.
- Eu falhei, - Nico balbuciou. - Não há como trazê-la de volta.
A outra voz continuou em silêncio. Nico virou com uma expressão duvidosa,
- Há? Diga.
Algo reluziu. Achei que fosse só o fogo. Então percebi que tinha a forma de um homem — um punhado de fumaça azul, uma sombra. Se você olhasse diretamente, ele não
estava lá. Mas se olhasse pelo canto do olho, poderia perceber seu formato. Um fantasma.
- Nunca foi feito, - o fantasma disse. - Mas talvez haja um jeito.
- Conte-me, - Nico comandou. Seus olhos brilharam com uma luz ardente.
- Uma troca, - o fantasma falou. - Uma alma por outra.
- Eu ofereci!
- Não a sua, - o fantasma falou. - Você não pode oferecer a seu pai uma alma que eventualmente ele vai coletar de qualquer jeito. Nem ele estará ansioso pela morte de seu filho. Eu quero dizer uma alma que já deveria ter morrido. Alguém que enganou a morte.
O rosto de Nico se tornou sombrio.
- De novo não. Você está falando em assassinato.
- Estou falando de justiça, - o fantasma disse. - Vingança.
- Estes não são a mesma coisa.
O fantasma riu secamente.
- Você aprenderá diferente quando ficar mais velho.
Nico fixou-se no fogo.
- Por que eu não posso ao menos convocá-la? Quero falar com ela. Ela... ela me ajudaria.
- Eu te ajudarei, - o fantasma prometeu. - Eu não te salvei tantas vezes? Não te guiei pelo labirinto e te ensinei como usar seus poderes? Você quer desforra por sua irmã ou não?
Eu não gostei do tom de voz do fantasma. Ele me lembrou de uma criança da minha antiga escola, um valentão que costumava convencer outras crianças a fazer coisas estúpidas, como roubar material de laboratório e vandalizar o carro dos professores. O
valentão nunca teve problemas, mas colocou muitos garotos de suspensão. Nico se virou para o fogo de forma que o fantasma não pudesse vê-lo, mas eu podia. Uma lágrima desceu pelo seu rosto.
- Muito bem. Você tem um plano?
- Ah sim, - o fantasma disse, soando muito satisfeito. - Temos muitas estradas escuras para percorrer. Devemos começar...
A imagem tremeluziu. Nico desapareceu. A voz feminina do vapor disse Favor depositar um dracma para mais cinco minutos.
Não havia outra moeda na fonte. Eu apalpei meus bolsos, mas estava usando pijamas.
Fui para a cabeceira para checar por trocados, mas a mensagem de Íris já havia piscado, e o quarto ficou escuro novamente. A conexão tinha terminado. Fiquei parado no meio do chalé, ouvindo o gorgolejar da água na fonte salgada e as ondas do mar lá fora.
Nico estava vivo. Ele estava tentando trazer sua irmã de volta dos mortos. E eu tinha a sensação de que sabia que alma ele queria para a troca — alguém que tinha enganado a morte. Vingança.
Nico di Angelo estava vindo atrás de mim.

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