– Percy, acorde.
Pingos de água salgada em meu rosto. Annabeth estava sacudindo meu
ombro. À distância, o sol se punha atrás da silhueta de uma cidade. Pude
ver uma rodovia litorânea ladeada por palmeiras, fachadas de lojas
brilhando em neon vermelho e azul, um porto cheio de veleiros e navios
de cruzeiro.
– Miami, eu acho – disse Annabeth. – Mas os cavalos-marinhos estão agindo de um jeito engraçado.
Certamente, nossos amigos aquáticos tinham reduzido a velocidade e
estavam relinchando e nadando em círculos, farejando a água. Não
pareciam felizes. Um deles espirrou. Pude entender o que estavam
pensando.
– Aqui é o mais longe que eles podem nos levar – disse eu. – Seres
humanos demais. Poluição demais. Teremos de nadar até praia sozinhos.
Nenhum de nós ficou muito entusiasmado com aquilo, mas agradecemos a
Arco-íris e seus amigos pela carona. Tyson chorou um pouco. Soltou o
alforje improvisado que tinha feito, contendo seu conjunto de
ferramentas e um par de outras coisas salvas dos destroços do Birmingham.
Depois abraçou o pescoço de Arco-íris, deu-lhe uma manga encharcada que
colhera na ilha e disse adeus. Depois que as crinas brancas dos
cavalos-marinhos desapareceram no mar, nadamos para a praia. As ondas
nos empurraram para a frente e num piscar de olhos estávamos de volta ao
mundo mortal. Perambulamos pelos cais dos navios de cruzeiro, abrindo
passagem por entre uma multidão que chegava para viagens de férias.
Carregadores se ocupavam com carrinhos de bagagem. Taxistas gritavam um
para o outro em espanhol e tentavam furar a fila para pegar passageiros.
Se alguém reparou em nós – cinco crianças encharcadas e com aparência
de quem acaba de lutar com um monstro – não deixou transparecer. Agora
que estávamos de volta entre mortais, o olho único de Tyson estava
velado pela Névoa. Grover enfiara seu boné e os tênis. Até o Velocino se
transformara, de uma pele de carneiro em uma jaqueta colegial de couro
vermelha e dourada com um grande ômega reluzente no bolso. Annabeth
correu para a banca de jornais mais próxima e conferiu a data no Miami Herald. Ela praguejou.
– Dezoito de junho! Estivemos longe do acampamento por dez dias!
– É impossível! – disse Clarisse. Mas eu sabia que não era. O tempo passava de um jeito diferente em lugares monstruosos.
– A árvore de Thalia já deve estar quase morta – lamentou-se Grover. – Temos de levar o Velocino para lá esta noite!
Clarisse desmoronou na calçada.
– Como vamos fazer isso? – A voz dela tremeu. – Estamos a centenas de
quilômetros de distância. Sem dinheiro. Sem transporte. Exatamente como
disse o Oráculo. A culpa é sua, Jackson! Se você não tivesse se
metido...
– Culpa de Percy? – explodiu Annabeth. – Clarisse, como pode dizer isso? Você é a maior...
– Parem com isso! – falei.
Clarisse enfiou a cabeça nas mãos. Annabeth bateu o pé de frustração. O
fato era: eu quase esquecera que aquela missão deveria ser de Clarisse.
Por um momento assustador, vi as coisas do ponto de vista dela. Como me
sentiria se um bando de outros heróis tivesse se metido e me deixado
mal? Pensei no que tinha ouvido na sala das caldeiras do Birmingham
– Ares gritando com Clarisse, avisando que era melhor ela não
fracassar. Ares pouco se importava com o acampamento, mas se Clarisse
manchasse sua reputação...
– Clarisse – disse eu – o que foi exatamente que o Oráculo lhe disse?
Ela ergueu os olhos. Pensei que fosse gritar comigo, mas em vez disso ela respirou fundo e recitou a profecia:
Navegarás com guerreiros de osso em navio de ferro
O que procuras há de encontrar, e teu o tornarás
Mas sem esperança dirás, minha vida em pedra enterro
Sem amigos falharás, e voando só, retornarás.
– Ui! - murmurou Grover.
– Não – disse eu. – Não... espere um minuto. Eu entendi.
Vasculhei meus bolsos procurando dinheiro, e não encontrei nada a não ser um dracma de ouro.
– Alguém tem algum dinheiro?
Annabeth e Grover sacudiram a cabeça devagar. Clarisse puxou do bolso um dólar da época da Guerra Civil encharcado e suspirou.
– Dinheiro? – perguntou Tyson, hesitante. – Tipo... papel verde?
Eu olhei para ele.
– É.
– Como o que veio nos sacos de viagem?
– É, mas nós perdemos aqueles sacos dias a-tr-tr...
Gaguejei até parar enquanto Tyson vasculhava seu alforje e tirava de lá
um saco ziploc cheio de dinheiro que Hermes incluíra nos nossos
suprimentos.
– Tyson! – disse eu. – Como você...
– Pensei que fosse um saco de ração para Arco-íris – disse ele. – Achei flutuando no mar, mas só tinha papel dentro. Pena.
Ele me entregou o dinheiro. Notas de cinco e dez, pelo menos trezentos
dólares. Corri para o meio-fio e peguei um táxi que acabava de
desembarcar uma família de passageiros de um cruzeiro.
– Clarisse – gritei. – Venha. Você vai para o aeroporto. Annabeth, entregue o Velocino a ela.
Não sei muito bem qual das duas pareceu mais perplexa quando tirei a
jaqueta-Velocino de Annabeth, enfiei o dinheiro no bolso dela e a
coloquei nos braços de Clarisse. Clarisse disse:
– Você vai me deixar...
– É sua missão – disse eu. – Nós só temos dinheiro suficiente para um
voo. Além disso, eu não posso viajar pelo ar. Zeus me explodiria em um
milhão de pedaços. É isso o que queria dizer a profecia: você falharia
sem amigos, o que significa que precisava de nossa ajuda, mas teria de
voar para casa sozinha. Você precisa levar o Velocino em segurança. Eu
podia ver a cabeça dela trabalhando – desconfiada de início, imaginando
que truque eu estaria armando, depois, finalmente, concluindo que eu
queria mesmo dizer o que tinha dito. Ela pulou para dentro do táxi.
– Pode contar comigo. Não vou falhar.
– Não falhar seria bom...
O táxi arrancou em uma nuvem de fumaça do escapamento. O Velocino estava a caminho.
– Percy – disse Annabeth – aquilo foi tão...
– Generoso? – sugeriu Grover.
– Maluco – corrigiu Annabeth. – Você está apostando a vida de todos no
acampamento que Clarisse levará o Velocino em segurança para lá esta
noite? – É a missão dela – disse eu. – Ela merece uma chance.
– Percy é legal – disse Tyson.
– Percy é legal demais – resmungou Annabeth.
Mas eu não pude deixar de pensar que talvez, apenas talvez, ela
estivesse um pouco impressionada. De qualquer modo, eu a surpreendera. E
isso não era coisa fácil de fazer.
– Vamos – disse aos meus amigos. – Vamos encontrar outro jeito de ir para casa.
Foi então que me virei e encontrei uma ponta de espada na minha garganta.
– Oi, primo – disse Luke. – Bem-vindo de volta aos Estados Unidos.
Seus homens-urso brutamontes surgiram pelos dois lados. Um agarrou
Annabeth e Grover pela gola das camisetas. O outro tentou agarrar Tyson,
mas Tyson o derrubou em uma pilha de malas e rugiu para Luke.
– Percy – disse Luke calmamente – diga ao seu gigante para recuar ou
mandarei Oreios esmagar as cabeças dos seus amigos uma contra a outra.
Oreios arreganhou um sorriso e ergueu Annabeth e Grover do chão, os dois esperneando e gritando.
– O que você quer, Luke? – rosnei.
Ele sorriu, fazendo ondular a cicatriz no seu rosto. Fez um gesto em
direção à extremidade do cais, e notei o que deveria ter sido óbvio. A
maior embarcação no porto era o Princesa Andrômeda.
– Ora, Percy – disse Luke. – Eu quero estender minha hospitalidade, é claro.
Os gêmeos ursos nos tocaram para dentro do Princesa Andrômeda.
Jogaram-nos no convés dianteiro, na frente de uma piscina com fontes
borbulhantes que formavam um repuxo no ar. Uma dúzia dos variados
capangas de Luke – homens-cobra, lestrigões, semi-deuses de armadura de
batalha – tinha se reunido para nos ver receber um pouco de
"hospitalidade".
– E então, o Velocino, onde está? – perguntou Luke.
Ele nos examinou, espetando minha camisa com a ponta da espada, cutucando os jeans de Grover.
– Ei! – gritou Grover. – Há uma pele de bode de verdade aí embaixo!
– Desculpe, velho amigo. – Luke sorriu. – Entregue o Velocino e deixarei
você partir de volta à sua, ahn, pequena missão natural.
– Blaa-ha-ha! – protestou Grover. – Raio de velho amigo!
– Talvez vocês não tenham me ouvido. – A voz de Luke era perigosamente calma. – Onde... está... o... Velocino?
– Não está aqui – falei.
Provavelmente, eu não devia ter contado nada a ele, mas era uma boa sensação jogar-lhe a verdade na cara.
– Nós o despachamos na nossa frente. Você se deu mal.
Os olhos de Luke se estreitaram.
– Você está mentindo. Você não pode ter...
Seu rosto se avermelhou quando uma horrível possibilidade lhe ocorreu.
– Clarisse?
Fiz que sim.
– Você confiou... você deu...
– É.
– Agrio!
O gigante urso se encolheu.
– S-sim?
– Vá lá embaixo e prepare meu corcel. Traga-o para o convés. Preciso voar para o aeroporto de Miami, depressa!
– Mas, patrão...
– Faça isso! – berrou Luke.
– Ou você vai virar comida de dragão!
O homem-urso engoliu em seco e disparou escada abaixo. Luke ficou
andando de um lado para o outro na frente da piscina, praguejando em
grego antigo, agarrado em sua espada com tanta força que os nós dos
dedos ficaram brancos. O restante da tripulação de Luke parecia
inquieta. Talvez nunca tivessem visto o patrão tão enlouquecido. Comecei
a pensar... Se eu pudesse usar a raiva de Luke, fazê-lo falar de modo
que todos pudessem ouvir como seus planos eram insanos... Olhei para a
piscina, para as fontes borrifando água no ar, criando um arco-íris ao
pôr-do-sol. E de repente tive uma ideia.
– Você estava nos usando o tempo todo – disse. – Queria que trouxéssemos
o Velocino para você e o poupássemos do esforço de pegá-lo.
Luke fez uma careta.
– É claro, seu idiota! E você estragou tudo!
– Traidor!
Tirei meu último dracma de ouro do bolso e o joguei em Luke. Como eu
esperava, ele se esquivou facilmente. A moeda voou para dentro do repuxo
de água com as cores do arco-íris. Esperei que minha prece silenciosa
fosse aceita. Pensei de todo o coração: Ó deusa, aceite minha oferenda.
– Você enganou todos nós! – gritei para Luke. – Até DIONISO NO ACAMPAMENTO MEIO-SANGUE!
Atrás de Luke, a fonte começou a tremeluzir, mas eu precisava que a
atenção de todos estivesse em mim, então destampei Contracorrente. Luke
apenas deu um sorriso sarcástico.
– Não é hora para heroísmos, Percy. Largue sua espadinha insignificante ou vou mandar matá-lo mais cedo, e não mais tarde.
– Quem envenenou a árvore de Thalia, Luke?
– Fui eu, é claro – rosnou ele. – Eu já lhe disse isso. Usei a peçonha da velha Píton, diretamente das profundezas do Tártaro.
– Quíron não tem nada a ver com isso?
– Ah! Você sabe que ele nunca faria isso. O velho idiota não teria coragem.
– Chama isso de coragem? Trair seus amigos? Pôr em risco o acampamento inteiro?
Luke ergueu a espada.
– Você não entende nem a metade. Eu ia deixar você levar o Velocino... depois que eu tivesse terminado com ele.
Aquilo me fez hesitar. Por que ele permitiria que eu levasse o Velocino?
Devia estar mentindo. Mas eu não podia me permitir perder a atenção
dele.
– Você ia curar Cronos – disse eu.
– Sim! A mágica do Velocino teria acelerado dez vezes o processo de
recuperação dele. Mas você não vai nos deter, Percy. Você só nos atrasou
um pouco.
– Então você envenenou a árvore, traiu Thalia e nos preparou uma armadilha... tudo para ajudar Cronos a destruir os deuses.
Luke rangeu os dentes.
– Você sabe disso! Por que fica me perguntando?
– Porque eu quero que todo o público o ouça.
– Que público?
Então seus olhos se estreitaram. Ele olhou para trás, e seus facínoras
fizeram o mesmo. Eles engasgaram e recuaram, cambaleando. Acima da
piscina, tremeluzindo na névoa do arco-íris, estava uma visão em
mensagem de íris de Dioniso, Tântalo e o acampamento inteiro no
pavilhão-refeitório. Estavam sentados num silêncio perplexo nos
assistindo.
– Bem – disse Dioniso ironicamente – um entretenimento inesperado no jantar.
– Senhor D, você ouviu – falei. – Vocês todos ouviram Luke. O envenenamento da árvore não foi culpa de Quíron.
O senhor D suspirou.
– Acho que não.
– A mensagem de íris pode ser um truque – sugeriu Tântalo, mas sua
atenção estava dirigida principalmente ao seu cheeseburger, que ele
tentava encurralar com as duas mãos.
– Infelizmente, não – disse o senhor D, olhando com nojo para Tântalo. –
Parece que terei de reintegrar Quíron como diretor de atividades. Acho
mesmo que sinto falta dos jogos de pinoche do velho cavalo.
Tântalo agarrou o cheeseburger. Que não escapuliu para longe. Tântalo o
ergueu do prato e olhou para aquilo estupefato, como se fosse o maior
diamante do mundo.
– Peguei! – cacarejou ele.
– Não precisamos mais dos seus serviços, Tântalo – anunciou o senhor D.
Tântalo pareceu perplexo.
– O quê? Mas...
– Você pode voltar ao Mundo Inferior. Está despedido.
– Não! Mas... Nããããããããããããão!
Enquanto se dissolvia em névoa, seus dedos apertaram o cheeseburger,
tentando levá-lo à boca. Mas era tarde demais. Tântalo desapareceu e o
cheeseburger caiu de volta no prato. Os campistas explodiram em vivas.
Luke urrou de raiva. Golpeou a fonte com a espada e a mensagem de Íris
se dissolveu, mas estava feito.
Eu estava me sentindo muito bem comigo mesmo, até que Luke se virou e me lançou um olhar sanguinário.
– Cronos tinha razão, Percy. Você é uma arma pouco confiável. Precisa ser substituído.
Não entendi muito bem o que ele queria dizer, mas não tive tempo de
pensar a respeito. Um de seus homens soprou um apito de bronze, e as
portas do convés se abriram violentamente. Mais uma dúzia de guerreiros
foi despejada, formando um círculo à nossa volta, as pontas de bronze
das lanças na nossa direção. Luke sorriu para mim.
– Vocês não sairão vivos deste navio.
Tá acabando galera!!!! Dioniso finalmente serviu pra algo.
ResponderExcluirGRAÇAS AOS DEUSES!!!!! EU NÃO AGUENTAVA MAIS ESSE TÂNTALO!
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